O presidente do Uruguai, José Pepe Mujica, recebeu em 2014 a distinção da Ordem Nacional do Mérito no grau de Grande Colar do Equador, em meio a uma sincera homenagem do povo guayaquil durante a passagem da presidência pro tempore da União da América do Sul (Unasul), e foi lá que foi proferida a melhor palestra de Pepe Mujica.

Pepe Mujica se considerava um lutador incansável, sem vocação de herói, mas contrário às injustiças sociais.

Data do discurso: 11 de março de 2006

“Tenho que ser infinitamente grato. Sou um sertanejo meio maltrapilho, e o único mérito que tenho é ser um pouco basco, teimoso, duro, seguidor, constante. Caná que comi, foi porque me agarraram, eu falta velocidade.

Não tenho vocação de herói, tenho sim uma espécie de fogo por dentro, fui desafiado pela injustiça social, pela diferença de classes.

Acredito que o homem seja um animal gregário, que viveu 90% de sua história no planeta, em famílias. É raro o macaco que não consegue viver sozinho, precisa de outros. É por isso que Aristóteles tem razão, o homem é um animal político, porque não é felino, precisa da sociedade, perceba ou não.

Mas esses 10% da história do homem acima da Terra são responsáveis ​​pela nossa civilização que nos deu coisas bonitas. Afinal, vivemos 40 anos a mais neste século do que há 100 anos, em média. Sei que há fome, mas há o dobro da população e o dobro da quantidade de alimentos. Pena que jogamos fora quase 30% da comida que produzimos, nem damos aos cachorros, nem aos pobres. Essas são as contradições da nossa civilização, nuas, claras, agressivas, que nos dão razão, nos carregam as baterias para continuar lutando.

Nunca o homem teve tanto como hoje, nunca tanto conhecimento. Não me canso de repetir e lembrar os milhões de dólares por minuto que são gastos no mundo com orçamentos militares. Dizer que não há dinheiro neste mundo, para um gigantesco Plano Marshall que cobrirá a terra inteira em favor dos pobres, para integrar a vida humana. Me dizer que não há recursos não é ter vergonha.

Quando nos contam que a segunda fortuna do mundo, gastando um milhão de dólares por dia, teria que viver 220 anos para poder gastar o que tem, mas ainda não poderia, porque com uma taxa de juros de 2-3% ao ano ano, são 4 milhões de dólares por dia. E se dizemos que neste mundo não há dinheiro, é porque temos covardia política, não cobrar e pedir, e colocar a mão no bolso de quem pode.

É por isso que estamos na política, e é por isso que lutamos na política, porque, afinal, simplificar é cortar um pouco mais grosso a favor dos mais fracos. Porque política é escolher decisões, e escolher decisões que favorecem uma e podem prejudicar outra. E você está com a maioria ou com a minoria e não há meio-termo, você não pode ser neutro e tem que tomar partido.

Mas além desses companheiros, há outra coisa. Há uma coisa mais importante do que a justiça, alguns de nós queríamos formar um mundo que fosse um vale de lágrimas para ir para o paraíso, não estou levando isso para você. O paraíso é isso, ou essa é a condenação, e é essa vida que deve ser lutada para que as pessoas vivam melhor, e não há meio-termo.

Então, o primeiro valor, e isso faz sentido se falamos de coisas centrais, elementares e esquecidas, não chupo o dedo de uma homenagem, daqui vou deixar o mesmo velho que sou. O que faz sentido é pensar, porque tem muitos jovens, e se tu és jovem tem que saber disso: a vida te escapa, e se passa minuto a minuto e tu não podes ir ao supermercado comprar vida, luta para vivê-lo, para dar conteúdo à vida.

Você pode, em termos relativos, ser o autor do caminho de sua própria vida. Você não é como um vegetal que vive porque nasceu. Depois de nascer você pode dar um conteúdo, ou não. Ou você pode alienar sua vida e deixar que o mercado compre para você, e você passa a vida inteira pagando cartões e comprando aparelhos, e dá uma chance. E no final, depois disso, você parece um velho como eu. Cheio de reumatismo, você se descascou e o que você fez nesse mundo?

Mas se você teve um sonho e lutou por uma esperança, e tentou transmitir aos que ficam, talvez um pequeno sopro fique rolando, nas colinas, nos mares, uma memória pálida que vale mais que um monumento, que um livro, que um hino, que uma poesia. A esperança humana que se realiza nas novas gerações.

Camaradas, nada vale mais que a vida, lutem pela felicidade. E felicidade é dar conteúdo à vida, e para a vida, e não deixar que seja roubado de você. E para isso não existe receita, está aqui, na consciência. Se você usar a chance maravilhosa de nascer, quase milagrosa.

De resto, um segundo conselho aos jovens, o impossível custa um pouco mais. E derrotados, eles são apenas aqueles que baixam os braços e se rendem. A vida pode te dar mil tropeços, em todas as ordens, no amor, no trabalho, na aventura do que você está pensando, nos sonhos que você planeja realizar, mas mil vezes você é feito de força para voltar a subir .e recomeçar, porque o importante é o caminho. Não há meta, não há arco triunfal, não há paraíso que nos acolhe, não há odaliscas que vão te receber porque você morreu na guerra, não, você ficou, ponto final.

Não, o que existe é outra coisa, é a beleza de viver em plenitude, de querer a vida, em qualquer circunstância e lutar por ela, e tentar transmiti-la. Porque a vida não é apenas receber, é antes de tudo dar, algo do que temos. E por mais fodido que seja, você sempre tem algo para dar aos outros.

Ele era um garoto em um país que chamavam de pequena Suíça da América, e na década de 1940 vão estudar toda a América Latina, fomos filhos privilegiados, bastardos do império inglês, e nos saímos muito bem. Como a República Argentina que se orgulhava entre os poderosos do mundo, O Rio de Prata era algo diferente do resto da América Latina, parecíamos quase meio europeus, e até agora nos parecia que éramos. Mas isso foi uma miragem, passo, o mundo se rearranjou depois da guerra, os termos de troca chegaram, começamos a dever ao fundo monetário internacional, e essa foi a minha juventude. De algo que era muito alto e bonito e estava se desintegrando. E não há nada mais problemático do que aquele que, estando bem, desaba. Quem está acostumado a ser mau, resigna-se.

É por isso que pertenço a um movimento que bateu na boca e saiu para tentar mudar o mundo, e eles nos amarraram a um pau. Acalentamos os nossos sonhos, foram tempos em que pensávamos que a ditadura do proletariado era uma explicação importante para a luta de classes e, naturalmente, cada geração comete as suas vicissitudes. Mas aquele fogo antigo que carregávamos dentro era tão grande que nos permitiu chegar hoje, tendo consciência dos erros que cometemos, mas tendo consciência da gigantesca generosidade com que abraçamos a vida.

E quando vemos um mundo cheio de potes, prata, recursos … Deus me salve, parece que a alma deles se parte por te emprestar um carro, ou apertar a mão de um mendigo, ou pegar um cachorro e alimentá-lo. O que eu sei, não vi o mundo mais machete do que aquele em que vivemos. Tenho saudades daquele jovem de coração aberto, que erroneamente se entregou e deu tudo, e nada guardou para si.

Não nego o passado, não nego os erros, a vida é um aprendizado contínuo e está cheia de caminhos mortos e atropelamentos. Mas as velhas causas que nos impulsionaram estão presentes no mundo em que vivemos. Nunca se viu tanta concentração de riqueza, nunca se viu tanta desigualdade em um mundo que tem tantos recursos e nós temos tantas possibilidades. Acredito e tenho certeza de que o homem é capaz de construir sociedades infinitamente melhores, se tiver a coragem de olhar para a trajetória de sociedades mais antigas, que estão no fundo da história da humanidade. Não para voltar ao homem das cavernas, mas para aprender a generosidade que implica defender a vida, para entender isso, para entender o elementar, o mais simples, para sermos felizes precisamos da vida dos outros. Indivíduos sozinhos, não somos nada. Os indivíduos dependem da sociedade e do progresso da sociedade, e é isso que nos permite enriquecer e melhorar permanentemente nossas vidas. Portanto, causas coletivas devem ser levantadas, e nesta história, e neste momento, isso tem um nome. Nesta América Latina, a luta pela aproximação, a luta pela integração, a luta pela recriação de uma cultura que respeite a diversidade, mas que expresse aquele “nós” profundo e escondido que vem da formação da nossa própria história. Podemos e devemos, mas será possível, se houver vontade política, se houver compromisso.

E aos jovens, se você quer viver feliz, levante uma ideia para acreditar, viva para servir a essa ideia, não se deixe escravizar pelo mercado. O mundo que teremos será aquele que somos capazes de realizar, e porque nós latino-americanos devemos ser, por termos chegado tarde e por trás, um reservatório do melhor da civilização humana, um continente de paz, um continente de justiça, um continente de solidariedade, um continente onde é belo nascer e morrer, um continente que diz sim à justiça, um continente sem ódio, um continente sem vingança, um continente que dignifica a existência do homem sobre a terra, como um animal que cuida do maravilhoso da criação que significa esta nave da vida que é o planeta. Dê conteúdo à existência, porque se você não o fizer conscientemente, o conteúdo será a taxa que você tem que pagar todo final do mês, pelo novo gadget que você tem que comprar e assim por diante até o final de seus dias, até um dia os ossos não sobem, e adeus, não há de ti, nem a memória nem o fôlego.

Existem outras coisas além da juventude, a irreverência de se olhar no espelho e se comprometer com a realidade. Para isso você pode ser jovem, velho, médio, não precisa dividir o mundo em homens, mulheres, negros e amarelos; Deve ser dividido em dois setores, os que se comprometem e os que não se comprometem. E se comprometer é abraçar uma causa.

Eu sei que estou chegando na hora de sair, a qualquer momento que você saiu, isso mesmo Ainda não fui capaz de acreditar na vida após a morte ou em Deus. Eu respeito todas as religiões amontoadas, sabe por quê? Porque eu vi em uma enfermaria de hospital o enorme serviço que prestam ao bem morrendo, e é por isso que se eu não posso acreditar, não rio das religiões, eu as respeito. Eles me fizeram pensar; por sua validade em todos os tempos e em todas as épocas, e em todos os recantos da história do homem no planeta que sempre acredita em algo, que não há criatura mais utópica que o homem, por isso mesmo, porque ele é capaz de construir o necessidade de uma vida após a morte.

Um dia desses serei menos que pó, talvez, haverá uma pomba circulando, na cabeça de alguém.

Obrigado Equador, um abraço a todos. “

https://youtube.com/watch?v=8U5rH4z3_uA